Ao falar a parábola, com a qual este
capítulo se inicia, o Senhor estava continuando na mesma linha de pensamento, como
é mostrado pela Sua aplicação da parábola nos versículos 7 e 8. Quando o reino chegar,
significará julgamento para os malfeitores, mas os dias imediatamente anteriores
à sua chegada significarão tribulações para os santos. Seu recurso será a oração.
Mesmo um juiz injusto será movido a fazer justiça à uma viúva, se ela importuná-lo
suficientemente; assim o santo pode continuar esperando em Deus com a certeza de
ser ouvido na época devida.
Não há a menor dúvida sobre a vinda
do Filho do Homem para responder aos clamores de Seus eleitos. A única dúvida é
quanto à fé sendo encontrada em vívidos exercícios entre eles. O Senhor fez a pergunta:
“Quando porém vier o Filho do Homem,
porventura achará fé na Terra?”, mas Ele não a respondeu. A dedução parece ser
que a fé estará em maré baixa, o que concorda com Sua própria afirmação em outro
lugar de que “o amor de muitos esfriará”.
Se estivermos certos em acreditar que o fim dos tempos está muito próximo, faremos
bem em levar isso muito a sério e nos motivarmos para a fé e a oração. Apenas não
desmaiaremos se sempre orarmos.
O homem que ora, confia em Deus. O problema
de tantos é que eles confiam em si mesmos e em sua própria justiça. Para estes,
é endereçada a próxima parábola. O fariseu e o publicano são homens típicos. O Senhor
toma como certo que a graça de Deus, que traz justificação para os homens, estava
disponível, mas mostra que tudo depende da atitude de quem precisa dela. O fariseu
representa exatamente o filho mais velho do capítulo 15, o homem rico do capítulo
16, o ladrão impenitente do capítulo 23. O publicano representa o filho mais novo,
Lázaro, e o ladrão arrependido.
Com o fariseu, o que valia era ele mesmo,
seu caráter, seus feitos. Com o publicano, a confissão do pecado e sua necessidade
de propiciação – a palavra traduzida, “tem
misericórdia”, é literalmente “sê propício”
(ARA). Quão cheio de significado é o versículo 13! A posição do publicano: “de longe”,
indicando que ele sabia que não tinha o direito de se aproximar. Sua atitude:
“nem ainda queria levantar os olhos para
o céu” – o céu não era lugar para um homem como ele. Sua ação: “batia no peito”, confessando assim que
ele era o homem que merecia ser golpeado. Suas palavras: “(eu)
o pecador” (AIBB), pois aqui o
correto é o ao invés de um (conforme
traduzido na KJV). O fariseu dissera: “não sou como os demais homens”, golpeando outros homens em vez de si
mesmo. O publicano, ao bater no próprio peito, atingiu o homem certo e, ao se humilhar,
foi abençoado.
Quão surpreendentemente tudo isso se
encaixa com o tema especial deste evangelho. A graça estava presente em abundância
no perfeito Filho do Homem, mas, a menos que tenhamos, de nossa parte, o espírito
humilde e arrependido, perdemos tudo o que ela oferece.
O próximo incidente, que Lucas relaciona
brevemente nos versículos 15-17, impõe a mesma coisa. Meras crianças não têm
importância no esquema mundial das coisas, mas o reino é composto por elas. Não
é, como deveríamos pensar, que a criança deva alcançar o estado adulto para entrar,
mas que o homem adulto deve chegar ao estado de criança para entrar. O primeiro
pensamento poderia ter sido adequado à lei de Moisés, mas a graça está em questão
aqui.
Novamente, o próximo incidente, relativo
ao jovem rico, coloca sua ênfase no mesmo ponto. O Senhor acabara de falar receber
o reino como uma criancinha, quando o príncipe pergunta: “que hei de fazer para herdar a vida eterna?” Sua mente voltou-se
para as obras da lei, sem saber o que Paulo nos diz em Romanos 4:4: “Ora àquele que faz qualquer obra não lhe é
imputado o galardão segundo a graça, mas segundo a dívida”. Aproximando-Se nesta
base, o Senhor o remeteu à lei, no que diz respeito ao seu dever para com o próximo,
e em sua afirmação de tê-la cumprido desde a sua juventude, Ele o testou ainda além,
sobre a sua relação Consigo mesmo: “Vem,
e segue-Me”. Quem é esse “Me”? Essa foi a questão suprema, sobre a qual tudo dependia, seja para
o príncipe ou para nós mesmos.
O príncipe havia se dirigido a Ele como
“Bom Mestre”, e esse título elogioso
o Senhor havia recusado, pois estava desvinculado do reconhecimento de que Ele era
Deus. Na verdade Ele era Deus e
Ele era bom, e Se apresentou ao
jovem, pedindo-lhe que renunciasse ao que possuía e O seguisse – exatamente como
Levi havia feito algum tempo antes. A própria lei exigia que Deus fosse amado de
todo o coração. O príncipe amava a Deus assim? Ele reconheceu Deus no humilde Jesus?
Infelizmente, não. Ele pode alegar ter guardado os mandamentos relacionados ao seu
próximo; mas quebrou a lei completamente quando o primeiro de todos os mandamentos
estava em questão. Aos seus olhos, suas riquezas tinham mais valor do que Jesus.
Com grande dificuldade um homem rico
entra no reino de Deus, pois é tão difícil ter riquezas sem que o coração seja absorvido
por elas até ao ponto da exclusão de Deus. Para aqueles que pensavam nas riquezas
como sinais do favor de Deus, tudo isso parecia muito perturbador, mas a verdade
é que a salvação é impossível ao homem, embora possível a Deus. Isso nos traz de
volta ao ponto que está em questão. O reino não pode ser conquistado, muito menos
a vida eterna. Todos devem ser recebidos como dádivas de Deus. E se, ao receber
a dádiva, outras coisas são renunciadas, há uma recompensa abundante tanto agora
como no mundo vindouro.
Essa palavra de nosso Senhor, registrada
nos versículos 29 e 30, é muito abrangente. No tempo presente há muito
mais para todos os que renunciaram as boas coisas da Terra por causa
do reino. Qualquer dificuldade que possamos ter em entender isso é causada por nossa
incapacidade de avaliar corretamente os favores espirituais que compõem o “muito mais”. Paulo ilustra isso ao nos
dizer, em Filipenses 3, como ele calculou a riqueza espiritual derramada em seu
seio depois que considerou “tudo como perda”
(ARA). Como um camelo que, despido dos trapos que carregava, tivesse passado pelo
fundo de uma agulha, apenas para se ver carregado de favores do outro lado.
Tudo isso soaria muito estranho para
a mente judaica, mas o fato, que explicava tudo, era que o Filho do Homem não estava
indo neste momento para tomar o reino, mas indo a Jerusalém para morrer. Então,
novamente, neste ponto, Jesus falou da morte que estava bem diante d’Ele. Os profetas
haviam indicado que essa era a maneira pela qual Ele entraria em Sua glória, embora
os discípulos não conseguissem entendê-la. E embora Ele assim os tenha instruído
novamente, eles falharam em aceitá-la. Tal é o poder com que noções preconcebidas
podem atingir a mente.
O Senhor estava agora em Sua jornada
final para Jerusalém, e Ele Se aproximou de Jericó pela última vez. O cego O interceptou
com fé. A multidão disse-lhe que Jesus Nazareno estava passando, e imediatamente
se dirigiu a Ele como o Filho de Davi e pediu misericórdia. O rico príncipe perguntou
o que deveria fazer, quando o Senhor acabara de falar do reino como sendo
recebido. O mendigo cego respondeu o que ele queria receber quando
o Senhor perguntou o que Ele deveria fazer. Nenhuma ação aconteceu no caso
do príncipe: uma ação foi completada imediatamente no caso do mendigo. O contraste
entre os dois casos é muito claro.
O mendigo recebeu sua visão e o
Senhor lhe disse: “a tua fé te salvou”.
Isso mostra que a ação foi mais profunda do que a abertura dos seus olhos. Ele se
tornou um seguidor do Jesus que estava indo para Jerusalém e para a cruz; e havia
glória a Deus, tanto da parte dele como da parte de todos os espectadores. Um caso
igualmente distinto de bênção espiritual veio ao encontro do Senhor quando Ele entrou
e passou por Jericó.
Se o evangelho de Lucas neste ponto
for comparado com Mateus 20:29-34 e Marcos 10:46-52, uma discrepância séria se torna
evidente. Lucas definitivamente coloca a cura do cego quando Jesus Se aproxima de Jericó, e os outros dois evangelistas
definitivamente O colocam como saindo de Jericó. Com o nosso conhecimento
limitado, parecia impossível, neste ponto, conciliar os diferentes relatos. Mas
durante os últimos anos os arqueólogos cavaram a área de Jericó e descobriram os
alicerces de duas Jericós; uma, a antiga cidade original, e outra, a Jericó Romana,
a uma curta distância. O cego estabeleceu o seu lugar onde mendigava entre as
duas! Lucas, escrevendo para os gentios, naturalmente tem a Jericó romana em sua
mente. Os outros evangelistas, muito naturalmente, estão pensando na cidade original.
Mencionamos isso para mostrar como, muito simplesmente, o que parece uma objeção
insuperável desaparece quando conhecemos todos os fatos.